sábado, 31 de dezembro de 2011

Onirismo


A cama ainda fumegava e o ar estava impregnado pelo odor da tensão dos corpos. Ele dormia profundamente. Ela levantou-se e veio à janela à procura de uma brisa fria que lhe dissesse se tudo fora, ou não, apenas um sonho.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Céu



Saiu com a filha para dar um passeio junto ao mar. Depois de olhar o horizonte por algum tempo, a menina perguntou: “Oh mãe, quando os gatos morrem para onde vão?” A mãe fez uma pausa e respondeu de forma meiga: “Filha, os gatos quando morrem vão para o céu.” A miúda não quis contrariar a mãe, mas ela sabia que se assim fosse o céu estaria cheio de gatos e não de nuvens.

Batalha nocturna


A noite chegava e as ruas da cidade eram tomadas de assalto por exércitos de homens e mulheres em busca de emoções que os transportassem para longe do irremediável quotidiano. Posicionavam-se para a corrida. Cruzavam-se como se uns e outros não existissem. Eram felizes e infelizes, cada um à sua maneira, até que o sol os expulsava. Pela manhã vinham os carros do lixo que lavavam as ruas, recolhiam os sonhos perdidos e reciclavam-nos para a noite seguinte.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Revenda


Em criança que descobriu que tinha muito amor para dar e quando cresceu descobriu que ainda tinha muito mais para vender. Por isso, há dez anos que trabalhava como prostituta.
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Translação


Ele apresentava as suas desculpas, mas estas morriam como ondas na praia. Ela, sentada dentro do carro, evadia-se olhando o vazio. As horas escorriam, deixando-o a ele quase sem palavras e a ela com os ouvidos a abarrotar. O sol, vendo que nada mais podia fazer, partiu em busca de outras almas para iluminar. Quando a lua chegou já o parque de estacionamento estava vazio, mas no vento ainda ecoavam algumas promessas que ali ficaram no chão.
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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Sentença

O cigarro bailava-lhe nos lábios, lançando no ar pequenas nuvens. Uma alça caída desvendava um dos seios. Olhou-me directamente nos olhos e pediu para que me aproximasse. Tinha no rosto aquela expressão que anunciava tormenta. Avancei para ela como um condenado. Abraçou-me e deu-me um beijo na face. Tudo começou e acabou sem que eu me desse conta. Passados tantos anos, sempre que o telefone toca, ainda o atendo na ânsia de seja ela a murmurar o meu nome.

Ondas hertzianas


Nos momentos mais infelizes, uma música era tudo o que bastava para lhe incendiar o mundo e dar-lhe a volta ao sorriso. Rodou o botão do rádio vezes sem conta, mas, não encontrou nenhuma melodia que lhe afagasse a alma. Deitou-se na cama e no silêncio da noite escutou o bater de corações por toda a cidade e assim adormeceu.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Equilíbrio


Davam largos passeios pelas zonas mais lúgubres da cidade. Apesar de toda a decadência, era ali que encontravam beleza e amor em estado puro. Inspiravam a tristeza do ar e expiravam alegria para a atmosfera. Foi a forma que encontraram de manter o equilíbrio entre o bem e o mal.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Contas



Sempre preferiu as letras aos números. Escrevia cartas lindíssimas, histórias de encantar e poemas arrebatadores. Mas, na altura de fazer as contas, por mais que tentasse juntar um mais um, nunca conseguia que fossem dois.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Incerteza



Sentiu o corpo nu contra o frio e as pontas afiadas das rochas. Ali ao lado, indiferentes a tudo, as ondas marulhavam numa cadência incerta. A maresia beijava-a e arrepiava-lhe a pele. Levantou-se lentamente, sentiu os músculos entesados e adormecidos. Deu passos morosos e incertos. Ao pisar a areia sentiu-se finalmente a caminho de casa. Não se lembrava como ali chegara, e isso também não importava, não podia mudar o passado, só lhe interessava agora a incerteza do futuro.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Feliz Natal


Ele dirigiu-se para a porta. Ela seguiu-o de perto. Ele vestiu o casaco, ajeitou o cabelo e a gravata, calçou as luvas e, sem se virar para trás, disse: Feliz Natal, até à próxima. Ela respondeu: Nós, as putas, não temos Natal. Por todo o prédio ecoou o estrondo da porta ao fechar-se.
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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Primavera precoce




Indiferentes à borrasca, correram velozes por entre a brancura que envolvia a cidade. Abraçaram-se como se fosse a última oportunidade. A força dos braços foi tal que os ossos ameaçaram estalar. Os lábios fundiram os corpos, transformando-os num só ser. O calor emanado pelos corpos derreteu a neve e nesse ano a Primavera chegou mais cedo.

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quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Cheias


Um espesso manto de nevoeiro abateu-se sobre o vale. Os náufragos gritavam dentro da água fria. Na margem, as mulheres choravam, impotentes. As lágrimas engrossaram o rio e este transbordou, trazendo os homens para terra.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Evasão


Enquanto ele olhava fixamente o mar, ela aproximou-se por trás e abraçou-o com o máximo das suas forças. Sentia que a fuga estava a ser planeada. Já que ele ia fugir dali para fora, ao menos que fosse apenas a mente. Guardaria o corpo como recordação da partilha de momentos felizes.
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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Liderança


Ela obrigou-nos a trazer tabaco e pistolas antes do amanhecer. Nós sentámo-nos em roda e escutámos toda a sua eloquência. Em voz alta, proclamou que os homens viviam melhor sob o seu jugo. Ao romper da aurora, fomos surpreendidos por uma emboscada e o bando espargiu-se pela charneca. Reunimo-nos de volta no covil e esperámos por ela. Até que chegou a notícia antecipada pelos nossos pesadelos. Abraçámo-nos e sentimos a comunhão da orfandade.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Tempestade


Aos primeiros trovões, as luzes apagaram-se, os cães uivaram, as mulheres rezaram, os homens acenderam as lareiras e os gatos aproveitaram. Um bebé chorou quando uma gota lhe caiu sobre a testa. A mãe não ouviu nada por causa da respiração ofegante do amante.
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domingo, 11 de dezembro de 2011

Migrações


As aulas terminavam e os dias arrastavam-se no vagar do calor. Eles chegavam com a precisão das aves migratórias, traziam histórias e cheiros de outras paragens, mundos para mim desconhecidos. Pelos novos costumes que exibiam, nalguns momentos pareciam quase estrangeiros. Quando partiam deixavam um vazio que era preenchido pelas primeiras chuvas de Outono, eu voltava à escola e ficava a sonhar como seria viver no seu novo país.
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sábado, 10 de dezembro de 2011

Louca

A louca percorria as ruas da cidade empurrando um carro de supermercado carregado de miséria. As crianças escondiam-se em casa à sua passagem, as histórias tenebrosas para os obrigar a comer a sopa, eram mais fortes que a curiosidade de ver de perto tal personagem. Os adultos desviavam o olhar, como que a protegerem-se de um feitiço. Indiferente a tudo o que diziam sobre ela, seguia o seu caminho inabalável, pois, sabia que de entre todos era a única que sabia a verdade.
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Artes


Tinham visto aquela história tanta vez representada nas telas que já a sabiam de memória. Nunca imaginaram é que algum dia fossem eles a estar nos papéis principais. Viam agora que a tarefa não era tão fácil como parecia. Tentaram dizer as falas como os profissionais, soltaram até algumas lágrimas e risos sonoros, só que no final a música não tocou nem apareceram letras a anunciar o final. Recomeçou tudo outra vez.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Valores



Preparou ao milímetro a sua própria morte. Escolheu o fato, a data e a forma como iria abandonar o mundo. Sentou-se à mesa e começou a escrever uma nota de despedida. Subitamente, a porta escancarou-se com um pontapé e um homem empunhando uma arma ameaçou mata-lo se não lhe entregasse todo o dinheiro. O assaltante obrigou-o a escolher entre o dinheiro e a vida. Com uma calma invulgar, ofereceu-lhe todo o dinheiro, pois à vida não dava já qualquer valor.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Bela família



O pai era feio. A mãe era feia. Tiveram uma filha linda de morrer. O funeral foi em Outubro.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Desenlace



A seara ondulava, loura e delicada como uma princesa nórdica. Salpicada por sobreiros pachorrentos e sóbrios, a paisagem envolvia os dois corpos unidos. O pôr-do-sol tingiu de âmbar aquele quadro e a lua cheia deu os últimos retoques. Um tiro rebentou o silêncio da planície. As aves esvoaçaram aturdidas pelo estrondo e o sangue escorreu pelos campos. Os dois amantes jazeram no chão e foram beijados pelo orvalho até que o sol e os guardas chegaram.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Caminho


Conhecia aquele caminho melhor que a palma das suas mãos. Sabia de cor onde estavam todas as curvas e buracos daquela estrada. Naquele dia, ao chegar ao cruzamento onde sempre aguardava na interminável fila, girou o volante num sentido diferente. Guiou o carro até ficar sem gasolina. Depois caminhou até ficar sem fôlego, a cada passo que dava os olhos enchiam-se de paisagem. Então, descobriu que o mundo, tal como o amor, não tinha fim.