quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Intercessão



Laura brincava no chão da sala, indiferente à discussão que decorria na cozinha entre o pai e a mãe. As palavras sobrevoavam-na como obuses carregados de fel. Agarrou na boneca e acercou-se da porta. Vislumbrou os pais frente a frente como dois soldados inimigos no calor da guerra. Inspirou bem fundo e destilou todos os medos em forma de lágrimas que rolaram até aos pés dos adultos. A contenda parou, o silêncio instalou-se e todos os olhos pousaram nela.
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terça-feira, 29 de novembro de 2011

Regresso




Sem papéis que provassem a sua existência, a polícia encarcerou-o. Sofreu as mais vis sevícias, humilhações e provações. Refugiou-se num canto escuro e agarrou-se às melhores memórias que tinha armazenado. O sono foi o único que o conseguiu vencer. Acordou com a dureza do cacete do carcereiro que lhe mostrou não estar num hotel. O juiz mandou-o de volta ao país de onde fugiu. Ao pisar de novo o solo materno, o peito rompeu as correntes com o bater do coração.
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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Alívio


Já passeava pelo pinhal há mais de uma hora e o corpo começou a pedir atenção às necessidades básicas. Em todo aquele tempo não se tinha cruzado com ninguém, só a natureza selvagem o abraçava. Olhou em redor para se certificar que estava sozinho e decidiu urinar junto a uns arbustos. Ainda mal se tinha aliviado, passou uma rapariga que sorriu cumplicemente. Também ela sabia o que era ser apanhado desprevenido.
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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Notícias



Entrou a medo na tasca. O cheiro a presunto e a vinho obrigou-lhe o estômago a rugir. Ao balcão, homens de roupas e vidas encardidas bebiam copos de vinho e cantavam a má fortuna. O taberneiro olhou para o rapaz com desdém e berrou: O que é que tu queres daqui? O rapaz, de olhos pegados ao chão, respondeu baixinho: Sr. Isidro, a sua mãe morreu.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Estação


Foi um encontro fugaz. Trocaram histórias, sonhos e expectativas. Deitaram à terra sementes que mais tarde haveriam de brotar. A brevidade foi incomensurável, comparativamente ao deleite. Despediram-se. Seguiram caminhos separados, cada um deles escutando uma canção que só por dentro se podia ouvir. Não sentiram qualquer pesar ou dor, pois sabiam que o comboio voltaria, mais cedo ou mais tarde, a parar na mesma estação.
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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Outra força


Foram ao restaurante para celebrar o amor e tinham tanto para dizer naquela noite. Lá fora, os homens do lixo recolhiam os despojos do dia, despejando ruídos no silêncio da escuridão. Antes de chegar o jantar, ela ainda tentou dizer alguma coisa, mas a televisão foi mais forte.
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Rédeas



Decidiu que a partir daquele dia iria finalmente tomar conta da sua vida. Até esse momento, só tinha tomado conta do cão da sua madrinha.
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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Chuva


As crianças, fartas de tanto calor, rejubilavam com a chuva que caía em catadupa. Abrigados, os adultos falavam dos benefícios e malefícios de tal intempérie. As rãs eram uma orquestra. No meio do terreiro, uma mulher começou a cantar e a pouco e pouco outras mulheres se lhe juntaram, formando um coro prodigioso. Os homens formaram um anel que protegia as coristas. Muitos anos passaram e ainda hoje se fala com saudade daquela tempestade auspiciosa. 

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domingo, 20 de novembro de 2011

Fuga


Ele queria ser feliz e ela queria uma casa para morar longe dos pais. Fugiram num dia de Agosto. Contrariando todas as previsões meteorológicas, choveu. A alegria de ambos era tamanha que nem uma gota os molhou. Outra intempéries viriam que os apanhariam desprevenidos, mas esta não.
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sábado, 19 de novembro de 2011

Um domingo qualquer


O dia estava iluminado por um enorme sol que travava uma luta incessante com vento que o teimava em arrefecer. O rapaz e as duas raparigas chegaram a meio da tarde à aldeia junto ao mar. Num restaurante, pediram uma pizza para os três. Não havia dinheiro para mais. A irmã mais nova vinha ao encontro do namorado, que não apareceu. O moço tentou convencer a irmã mais velha de que os dois juntos podiam ser felizes, mas o remexer das ondas abafaram-no. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Recomeço



As ondas fustigavam o casco, obrigando o pequeno batel a revolver na água. Eu ansiava por escapar àquele tropel, mas as amarras agarravam-se à âncora como se da sua vida se tratasse. Peguei num velho cutelo carcomido pela maresia, e, com golpes incertos, a muito custo, destrocei os fios de cânhamo. Sem remos, leme ou farol que me guiasse, deixei que as correntes decidissem o meu futuro. Após algum tempo à deriva, cheguei uma ilha deserta e ali comecei tudo de novo.
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domingo, 13 de novembro de 2011

Tratado


Encontravam-se sempre a horas tardias para não despertarem a curiosidade dos olhares alheios. Durante meses, amaram-se sem que ninguém desconfiasse. Naquele dia o pai dela apareceu. Esconderam-se no canavial mas o bater dos corações delatou-os. Saíram do esconderijo e enfrentaram o ancião. Com poucas palavras, tudo ficou acertado naquela mesma hora. Os sinos tocaram no mês seguinte e passados mais sete, um choro pueril ecoou pela casa.
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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Carga


Mil voltas dadas na cama e o sono sem aparecer. Um rodopio infernal de pensamentos agitavam-lhe a cabeça. Levantou-se, pegou numa lata de tinta e foi para a rua. Alimentado pelo frio, escreveu poemas por toda a cidade enquanto as forças o habitaram. Sucumbiu encostado a um muro. Ao amanhecer, as pessoas a caminho do trabalho, ainda estremunhadas, leram aquelas palavras cravadas nas paredes e o seu fardo tornou-se muito mais leve.
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terça-feira, 8 de novembro de 2011

Alimento



A chuva caía com o peso de mil bigornas. A multidão tentava escapar à intempérie. Todos corriam esbaforidos como formigas assustadas. No meio de toda aquela confusão, um homem fazia o caminho de todos os dias, indiferente a tudo o que se passava em seu redor. Para ele não havia bom ou mau tempo, apenas pouco tempo para fazer o trabalho que lhe garantia pão sobre a mesa. Quando sentia as forças a esvaírem-se, abria a carteira e olhava para uma pequena foto que lá guardava.

sábado, 5 de novembro de 2011

Protecção



Nos dias de tempestade, passeava sozinha junto à costa. Na orla dos promontórios, lia poemas que o vento espargia pelo ar. A espuma das vagas adejava como flocos de neve. As gaivotas espiavam-na pairando no céu cinzento. Um dia, aqueles retiros cessaram com a presença de um homem de estampa imponente junto ao qual se abrigou quando as nuvens dissiparam e o sol brilhou. Sempre que estava triste, ele encobria-a com o corpo e soprava-lhe palavras de amor ao ouvido.

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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Poder divino


No meio da estrada, uma enorme árvore bloqueava a passagem. As pessoas desesperavam pela chegada dos bombeiros. Vendo tal situação, o frade Abel chegou-se à frente, e de um só golpe afastou a árvore para a berma. Toda a gente ficou espantada, mas ele explicou que era apenas a força do hábito.

Dia de finados


Era dia de Finados. Acordou cedo, vestiu-se de preto, saiu de casa e comprou um ramo de flores. Entrou no cemitério e dirigiu-se a uma campa vazia. Depositou o ramo, rezou e foi para casa. Assim, tinha certeza de que quando morresse este assunto já estaria tratado.