domingo, 30 de outubro de 2011

Despertar



Acordou com o som estridente do telefone. Do outro lado da linha, alguém queria falar com o gerente do estabelecimento. Murmurou que era engano, desligou e regressou ao leito ainda quente. Retomou o sono onde o havia deixado e sonhou que tinha uma loja de música onde todas as tardes os instrumentos, sozinhos, tocavam melodias extraordinárias.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A consulta


Quando chegou ao Centro de Saúde ainda o sol não raiava. Era a única forma de garantir uma consulta. Quando chegou a sua vez, entrou devagarinho no consultório. À pergunta mecânica do médico, respondeu: "Sr. Doutor, dói-me aqui." O médico, na sua letra indecifrável, passou uma receita para que ela fosse para outro lugar.

Bilhete de ida



Voltava sempre aos sítios onde tinha sido infeliz. Bastava chegarem as primeiras chuvas e lá se punha ela a caminho. Sem saber como, embarcava sempre no mesmo comboio e chegava sempre ao mesmo destino. Naquele dia de procela, esqueceu-se de comprar o bilhete e foi o melhor Inverno que passou. Tirou bastantes fotografias para se poder lembrar de como era a felicidade em dias de tempestade.

Alzira


Guardava os olhos em duas covas profundas cavadas no rosto. Num outro buraco escuro, escondia um coração negro e pesado. Os seus passos eram como um permanente caminhar pelo corredor da morte. Arrastava os pés, sulcando no chão regos onde semeava sementes de solidão de onde viriam a brotar tristeza. Chama-se Alzira, mas quase todos a chamavam velha cigana. Apesar de todo o amor que tinha para dar, todos a rechaçaram e ninguém a amou como merecia.

Encontro


Amava-a mas achava-se demasiado fraco para a interpelar. Viveu momentos de frenesim e desalento. Pensava que nunca conseguiria amar mais ninguém e para sempre estaria condenado a ser um anacoreta. Alguém lhe disse que a sua amada fora viver para a cidade. Uma força interior desconhecida fê-lo ir procura-la. Não a encontrou. Perdeu-se nas labirínticas ruas da metrópole. Foi encontrado anos mais tarde nos braços de uma mulher lindíssima, rodeado de crianças louras.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Sabores


Eram os dias dos cigarros fumados às escondidas. Paixões assolapadas e amores não correspondidos, vertidos em cadernos de argolas. Noites perdidas sem dar pela sua falta. Os dias eram felizes mas eles não o sabiam. Deslizavam pela vida como por um corredor sem fim. Na sofreguidão de chegar cada vez mais longe, só saborearam a verdadeira essência da vida, no dia em que se cruzaram pela primeira vez e não tiveram vontade de se abraçar.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Segurança



Toda a vida ansiou por segurança. Casou com um polícia que a prendeu para sempre a uma casa feita de sombras frias e fantasmas assustados. Na primeira vez que regressou à vila onde cresceu, já sem os grilhões que a prendiam ao marido, chorou lágrimas grossas que regaram o roseiral da casa da sua mãe.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Partilhas


Passeavam sempre de mão dada junto ao rio. Naquela amena manhã de Outono, compraram um jornal, dividiram-no e sentaram-se num banco de jardim. Ele sentiu-se adormecer. Ela, durante vários meses, vestiu-se de preto todos os dias.

Notícias do mundo



Comprou o jornal, mas para seu espanto, todas as páginas vinham em branco. Pegou no lápis e fez do mundo local perfeito.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Baile


Agarrados um ao outro, num vórtice de paixão, varreram o salão de ponta a ponta. No pequeno palanque, os músicos não davam tréguas aos instrumentos. Encostados à parede, no escuro, homens e mulheres ingeriam bebidas feitas de inveja e desdém. Quando a música parou, o casal continuou a dançar até sair do prédio. Nunca mais ninguém os viu.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Chuva



Amavam-se todos os dias ao fim da tarde, quando sol tocava no mar e pintava a água a tons de âmbar. Naquele dia choveu. Choveu como nunca antes chovera. O sol não apareceu e ele também não. As lágrimas dela engrossaram o caudal que causou as cheias na baixa da cidade.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Dias contados



O velho avançava lentamente por entre a cacimba que teimava em embaciar-lhe os óculos. Ao fundo da rua surgiu um cortejo fúnebre. Tirou o chapéu, baixou a cabeça, e depois seguiu o seu caminho. Os seus dias eram cada vez mais curtos.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Frequência cardíaca



Quando se encontraram pela primeira vez, teve medo que ele lhe partisse o coração. Só descansou quando soube que ele era cardiologista.

sábado, 8 de outubro de 2011

Colecção


Desde pequeno que as despedidas eram punhais que cortavam os pulsos. Fez-se forte e lentamente foi guardando na mala as memórias que tinha daquele lugar. Todos os pedaços de vida que achou relevantes foram cuidadosamente acondicionados. Saiu de casa e caminhou pelo mundo em busca de novos sonhos. Com o passar dos dias, a velha mala estava cada vez mais leve. Isso fê-lo sentir feliz. Havia finalmente espaço para guardar novas recordações.

Histórias



Toda a gente conhecia o velho Emídio. Carregava sacas cheias de livros de feira em feira. Derramava-os no chão e apregoava histórias belíssimas, novelas e romances deleitosos, a emoção ao virar de cada página. Uma rapariga aproximou-se e perguntou se ele lhe podia aconselhar um livro. Queria uma história arrebatadora que lhe apressasse o coração. O velho disse-lhe baixinho: A menina quer uma história comovente? Então aqui tem uma: Não sei ler nenhum destes livros.

domingo, 2 de outubro de 2011

Frutos



O anel pesava, sufocava e apertava-lhe o pescoço como a corda de uma forca. Os anos sucederam-se e apenas deixaram frutos estiolados e azedos. Decidiu que nessa noite seria escrita a última página da tragédia. Mas ele não veio dormir a casa. Os dias passaram sem notícias dele. A polícia fez poucas perguntas e nunca mais voltou. As pessoas começaram a soltar calúnias. Ela não se importou. Vestiu-se de negro, enterrou o anel no quintal e saboreou as laranjas, agora, doces como o mel.

sábado, 1 de outubro de 2011

Perdão



Com passos lentos e inseguros, aproximou-se das paredes altas e escuras da velha fábrica. Fustigada por uma enxurrada de memórias, lembrou-se de como deixara ali parte da vida, sem ter recebido nada em troca. Recordou os dias em que senhores apareciam com palavras caras e muito bem vestidos e dos trabalhadores que serenavam e prosseguiam a inópia. Passados tantos anos, conseguiu finalmente perdoar aquele lugar e ser realmente livre.